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A humanidade como religião

A humanidade como religião

‍Eu não quero saber qual é a sua religião, nem no que você acredita ou deixa de acreditar. A pergunta é: Para o que você procura conexão? A imensa maioria das pessoas busca o caminho através de quatro portais: o nascimento do seu filho ou de alguma criança querida, a doença, a velhice ou perda da potência, e a morte. Há os que buscam para resolver problemas financeiros, que a meu ver está no campo da perda da potência, do poder de compra, e alguns poucos por curiosidade ou um chamado. Nesse cenário de decadência e morte que nos cerca, faz sentido que tantas pessoas estejam curiosamente em busca, ou se sentido chamadas. Mas isso não responde o “para que” da conexão. Isso responde o quando.

Eu não acredito em espiritualidade sem religião, ou religião sem espiritualidade, mas ambas são comumente praticadas separadamente. Parece contraditório o que digo, por isso precisamos entender e definir o que é cada coisa. Quando religião e espiritualidade se encontram separadas, elas simplesmente não são… ou são outras coisas… que merecem outros nomes.

Os buscadores de religião de todos os tipos e credos podem ou não encontrar a espiritualidade nesse caminho, mas, a princípio, querem algo que possam defender como verdade, resposta, um conjunto de certezas, fazer parte de um grupo, buscar apoio, uma família, exercitar relações de poder (que podem não existir para si na sua realidade), ou querem um lugar para se sentir limpo, seguro, defendido. Note que nada disso é espiritualidade. Isso é o que se costuma chamar religião.

Os buscadores de espiritualidade querem liberdade para questionar sobre o sentido da vida, desafiar as certezas, agradecer as coisas boas que acontecem inevitavelmente, encontrar caminhos nos momentos que parece não haver, aprender valores, ser feliz, aprender a viver com quem nos cerca e a morrer em paz com a consciência. Não dá para falar de espiritualidade sem pensar em nascer e morrer, dentro de um contexto de vida em sociedade, e a chamada religião é um “cercadinho” dessa vida em sociedade. A espiritualidade, o recheio que permeia tudo isso necessita, portanto, ser posta à prova através do desafio das relações que o grupo religioso e a sociedade oferecem. Ou seja, sem um grupo para nos testar, negamos o próprio porquê de toda a nossa busca espiritual.

Foto: Junior Albuquerque

O que faz a grande diferença a meu ver é o quão ampliado enxergamos o tal cercadinho que chamamos religião. Se ele envolve apenas o grupo que segue o meu credo, o meu deus, assuas hierarquias, castas, dogmas, altares, templos, dízimos, livros e julgamentos, se separamos apenas esse grupo para respeitar, então ele exclui toda sociedade que não está nesse cercadinho, e acabamos por não respeitar nem grupo nem pessoa alguma.

A espiritualidade acontece entre as pessoas dentro e fora desses espaços e se manifesta quando nos encontramos com o outro. Cada dedo apontado em julgamento ao próximo conta sobre nossas feridas vividas de trocas com pessoas que cruzaram nosso caminho. Somos todos nós muitos reflexos de nós mesmos. É natural portanto que as pessoas buscadoras de espiritualidade, ao se desiludirem com as pessoas buscadoras de religião, escolham se isolar e abandonar seu grupo e assim as religiões vão virando apenas carcaças de exercício de poder, arrastando pessoas que confundem verdade com dogma, valor com dinheiro, nobreza com prestígio e escolhas com censura.

Quando enxergamos toda a sociedade como nossa religião, como grupo de partilha e comunhão, aonde aquilo que eu não desejo para mim eu não faço ao outro, então a religião e a espiritualidade se encontram num casamento perfeito, onde há lugar para todos os credos e até para quem não crê. Toda religião tem o retrato de nossa sociedade em menor escala, como um fractal, e os problemas que identificamos nessa escala menor, também serão encontrados na dimensão maior. Portanto, fugir do grupo é como desistir de toda a humanidade.

E de que serve tanta prática espiritual sem um grupo para nos lapidar? Costumo dizer que cada pessoa que me irrita e tira a minha paciência é também meu maior mestre a me ensinar sobre o tema. As pessoas que me agradam, com quem eu concordo e não me irritam, me ensinam outras coisas, mas não paciência. Olhando assim podemos entender que existe uma urgência: tornar toda a sociedade nossa religião, um lugar onde podemos testar toda potência do que praticamos como espiritualidade, respeitando o tempo, a maturidade e as escolhas de cada um.

Luiza Sarmento, jornalista e ativista em consumo consciente e sustentabilidade, apresentadora da Causa Justa.

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