Comida É Afeto | Feira, pra que te quero?
 

Feira, pra que te quero?

Feira, pra que te quero?

Um dia ouvi uma frase que chacoalhou, aqui dentro, algo sobre a percepção do cotidiano. Não estava vivendo um momento qualquer, o ano era 2020 e o mês abril. Moro no Rio de Janeiro – Brasil e a essa altura, o cotidiano parecia ser uma repetição interminável do mesmo. A magia veio da frase “o amor adora a repetição”, de Sri Sri Ravi Shankar e é sobre um cotidiano amoroso e potente que vou falar aqui. 

Hoje é dia de acordar mais cedo, comer a última fruta da fruteira, olhar o que ainda tem na geladeira, fazer lista e sair andando com passos rápidos. O destino é certo – a feira. Vou ligeiramente, pelos poucos quarteirões que nos distanciam, ao encontro do que a terra e a gente boa que trabalha com ela tem para oferecer.

Ao chegar na feira, meu instinto criativo é ativado. Os cheiros, as cores, as texturas, os itens que estão na lista, aqueles que não vieram e as novidades da semana. Entre uma prosa e outra com os agricultores, vou sabendo como foi a semana, o que foi alegria e o que foi tristeza, as preocupações e o que está sendo celebrado. 

No encontro semanal com quem roça, vou planejando o que comer na semana, conhecendo novas receitas, diversificando o cardápio e entendendo melhor as condições de vida e trabalho daqueles que são responsáveis por garantir a maior parte da comida que eu coloco no meu prato. 

Segundo o último Censo Agro de 2017 do IBGE, a agricultura familiar é responsável pela produção de 70% dos alimentos que vão para as nossas mesas, representam 77% dos estabelecimentos agrícolas do país e ocupam 23% da área agrícola total.

Enquanto escolho uma chicória que vou usar no suco verde, compro o peixinho da horta para empanar e a cenoura com a rama para fazer o molho pesto. Sigo proseando sobre as famílias, um pouco da minha e um tanto das deles. Você sabia que 200 famílias agricultoras participam das 9 feiras coordenadas pela Abio no município do Rio de Janeiro e o valor anual movimentado está em torno de dez milhões de reais?

Escolho ir à feira e não receber em casa. Sinto a feira como um entreposto de vida e de tão contente me percebo feliz com as prosas, com a bolsa tomando forma e pesando ao longo do caminhar pelo circuito. Os alimentos que eu encontro por lá, fizeram uma viagem curta, foram colhidos a poucas horas nas roças de quem proseei ou dos outros agricultores que participam das cooperativas e associações. 

Quando Sergio Schneider fala que “os circuitos curtos resgatam uma dimensão moral e ética entre os agentes participantes, pois para além da promoção de trocas de produtos e mercadorias que mudam de propriedade, as transações econômicas efetuadas se pautam em valores humanos e ambientais como justiça e sustentabilidade”, no prefácio do livro Circuitos Curtos de Comercialização Agroecologia e Inovação Social, ele estrutura o sentimento que me move.

A pandemia da COVID-19 evidenciou a crise no modelo atual dos sistemas alimentares para uma parte da população que desconhecia essa realidade. Mostrou que a maneira como estamos produzindo, estocando, distribuindo, comunicando, vendendo e descartando não está contribuindo para a construção de uma sociedade mais justa e sustentável.

Os circuitos curtos de comercialização se colocam como uma das vias de saída para as mudanças ao modelo atual e as feiras agroecológicas, orgânicas e de produtores locais são o ponto de encontro onde pulsa a esperança.

Fontes: 
https://censos.ibge.gov.br/agro/2017/2012-agencia-de-noticias/noticias/25786-em-11-anos-agricultura-familiar-perde-9-5-dos-estabelecimentos-e-2-2-milhoes-de-postos-de-trabalho.html

https://abiorj.org/https://ciorganicos.com.br/wp-content/uploads/2017/10/Circuitos-Curtos-de-Comercializacao-Agroecologia-e-Inovacao-Social.pdf

https://www.fao.org/brasil/noticias/detail-events/pt/c/1415747/



Autora: Claudia Lima, empreendedora socioambiental, cofundadora da Comida é Afeto.
@claudiamirandalima

5 Comentários
  • Claudio
    Postado às 22:15h, 29 outubro Responder

    “Os circuitos curtos de comercialização se colocam como uma das vias de saída para as mudanças ao modelo atual e as feiras agroecológicas, orgânicas e de produtores locais são o ponto de encontro onde pulsa a esperança.”

    Incrível!

    O mais “doido” é descobrir que esse é o modelo que sustenta o Brasil. A gente cresce ouvindo que o agronegócio é pop, que o agronegócio é isso e aquilo. Muita gente não sabe que a agricultura familiar representa 70% dos alimentos que vão para nossa mesa. Texto fundamental.

    Parabéns!

  • Luzia
    Postado às 13:27h, 31 outubro Responder

    Bela reflexão!

  • Kelly
    Postado às 12:34h, 02 novembro Responder

    Que texto incrível. Tb vou à feira ao invés dela vir bater a minha porta. Sua escrita representa muito do que penso. Bjo no coração

  • Edila emilia miranda Porto de Oliveira
    Postado às 19:05h, 05 novembro Responder

    Texto muito elucidativo, concordo com a argumentação e a maneira lúdica da narração, a agricultura familiar está tendo um destaque mais ampliado atualmente, gostaria que nossa ministra Tereza Cristina lesse esse texto, ela é uma entusiasta da agricultura familiar, parabéns!

  • Marcos Apostolo
    Postado às 13:49h, 15 novembro Responder

    Querida, muito bom o texto e muito boa a abordagem.

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