09 maio Empatia para curar o mundo
“Antigamente quando eu me excedia/ Ou fazia alguma coisa errada / Naturalmente minha mãe dizia: / “Ele é uma criança, não entende nada”/ Por dentro eu ria/ Satisfeito e mudo/ Eu era um homem / E entendia tudo…” ( trecho da música “Sou uma criança, não entendo nada”, Erasmo Carlos)
Dia desses numa roda de mulheres, uma delas, em certa altura, virou-se pra mim e disse: “Eu acho o feminismo importante, só não gosto desse vitimismo…”, e várias delas concordaram. Detalhe: essa conversa foi logo após uma imersão de reconexão com o nosso feminino ancestral. Não pude deixar de lembrar da canção do Erasmo Carlos, citada acima. Fiquei imaginando um estuprador, um padre pedófilo, um abusador, ouvindo essa mulher falar. Eles devem adorar ouvir isso da boca delas. Que reconfortante. Música para os ouvidos, hein! Já a vítima, que com certeza vai ouvir isso por toda parte, e muitas vezes da boca de pessoas queridas, esta será vitimada mais uma vez. E olhe! Não é menos doloroso. Dupla violência. Como a mãe que passa a mão na cabeça de seu filho todo errado, que é um homem e entende tudo. Vitimismo. Taí uma palavra que eu odeio; e como ela está nas bocas hoje em dia!
Então fui em busca dos significados das palavras. Ah a semântica! Tão importante e menosprezada. A causadora de guerras e paz. Vítima: “pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra” (segundo o Google). Ou seja: para cada pessoa ou nesse caso, mulher vitimada, há um algoz macho. Então fui buscar o significado do sufixo “ismo”:“sufixo de origem grega que exprime a ideia de fenômeno linguístico, sistema político, religião, doença, esporte, ideologia, etc.” “(segundo a wikipedia)”. Ou seja: a fé de que se é vítima, a doença de ser vítima, o esporte praticado pela vítima, a ideologia abraçada pela vítima. Não basta ser vítima do parceiro, do estuprador, do sistema, da sociedade. No final, acabamos sendo vítimas da própria língua. Ok! Você é vítima, mas não se gabe disto. Não se passe por coitada, no mínimo você fez algo para merecer ser vítima. Engula o choro e supere, é o que diz nas caixas de comentários das notícias de feminicídio e nas entrelinhas dessa fala. Nada mais vitimista do que chamar alguém de vitimista. Uma mulher que foi capturada do algoz. Se ela mesma não consegue parar de passar a mão na cabeça dele, como espera que a mulher que está intimamente envolvida, consiga?! Empatia, o antídoto para o mal da nossa sociedade.
Passei dias pensando sobre o paradoxo dessa situação. Um grupo para investigar e tratar as dores das nossas antepassadas, caladas, estupradas, violentadas, assassinadas e obrigadas a assumir uma postura masculinizada e competitiva para com outras mulheres, para poderem se afirmar no mundo. Aquela fala era ao mesmo tempo violenta e insensível à dor de outras irmãs, e, empoderada e madura, em relação às suas próprias dores. Será que é isso?! É isso mesmo que ela quis dizer? Então eu perguntei: “Como assim?!”. E ela respondeu:”A mulher tem que parar de ficar culpando os homens e ir à luta, superar essas dificuldades. As mulheres apanham, fazem denúncia e depois de um tempo retiram a denúncia e voltam com o abusador”. Subtexto: gostam de apanhar e botar a culpa no cara. Mi mi mi.
Bem, estávamos dizendo a mesma coisa, mas ela ainda culpava a vítima e eu tentava fazê-la compreender que lhe faltava empatia e que ela estava repetindo o discurso do algoz. E perguntei: “Qual a realidade dessa mulher? Como ela se sustenta? Tem filhos? Aliás, você já viveu um relacionamento abusivo?!”. questionei. E completei: “Não é fácil estar nessa posição. Não é fácil viver ao lado de uma pessoa manipuladora, que joga com os seus sentimentos e autoestima, e menos fácil ainda passar por tudo isso e ser julgada por outras mulheres. Muitas se calam e, sem autoestima, apoio, escuta e solução, voltam para seus abusadores”. Se tem uma coisa que precisamos aprender com os homens é sermos solidárias. Os homens sempre defendem outros homens. Sempre! Não importa o quão imunda seja a denúncia, as provas ou o flagrante, João de Deus que o diga.
Observando esse padrão masculino de fraternidade com os criminosos e depois de muito ouvir esse discurso de culpar a vítima, passei a confiar na palavra da mulher até que se prove o contrário, e tem uma lógica no que digo. As mulheres correspondem a 52% da população brasileira. Se a correspondência fosse direta, estaríamos em maioria nas cadeias. Porém, existem muito mais penitenciarias masculinas do que femininas no Brasil. Muito mais homens encarcerados do que mulheres. Mesmo existindo a lógica da culpabilização da vítima, mesmo existindo mais de 55 milhões de filhos sem o nome do pai na carteira de identidade. Só isso, por questão de sobrevivência já justificaria uma maior taxa de criminalidade entre mulheres, seja por vingança ou por roubos, furtos, mas no entanto…
E tem uma coisa que o feminismo não é, é vitimista. É o exato oposto disto. É a valorização da mulher, é o movimento que luta pela igualdade de espaços, vozes, oportunidades, pelo direito de fazermos o que quisermos; nem mais, nem menos que nenhum homem. E quando vejo a mulherada repetindo a ladainha dos homens amedrontados com as mulheres empoderadas, percebo que elas repetem a fala de homens que não entendem que igualdade não arranca pedaço, nem torna a mulher em algoz da violência. Muitos não entendem e então me vem a última parte da canção do Erasmo: ” Por dentro com / A alma atarantada/ Sou uma criança / Não entendo nada…”
Luiza Sarmento, jornalista e ativista em consumo consciente e sustentabilidade, apresentadora do Causa Justa.
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